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O nome de Tolkien se popularizou após os filmes baseados na sua obra O Senhor dos Anéis. Infelizmente muitos desconhecem a vastidão da obra dele e sua necessidade de apresentar um mundo total e coerente com o nome de Terra Média. É impressionante a capacidade criativa dele ao criar espaços geográficos, línguas específicas e definidas (respeitando padrões e códigos de linguagem) e uma mitologia desse mundo. Christopher, o filho do Tolkien, tomou para si a missão de sistematizar e publicar os livros do pai e assim existem mais de 30 livros com histórias sobre a Terra Média, infelizmente a maioria não foi traduzida para o português ainda.

Como vocês sabem jovens, Tolkien era católico e a explicação cristã do mundo atravessa toda a sua obra ainda que essa não seja a intenção final dele. Além do Cristianismo outros dois elementos são transversais na obra do sul africano: a ânsia de estar no lar e a música. O Senhor dos Anéis que é a sua obra mais famosa, é cheia de canções. As crônicas que Bilbo se propõe a escrever são em forma de canções. Nesse livro a música é memorial e em alguns casos circunscrevem identidades (assim é com a canção de Aragorn e a balada de Beren&Luthien). Uma coisa é certa: para Tolkien (tal qual seu amigo Lewis) a música é a maior expressão do divino.

A melhor definição que já vi sobre música e sobre Deus, fora da Bíblia, foi em um texto do Tolkien. O criador de Gandalf escreveu muitos livros sobre a Terra Média, um deles, o Silmarillion, conta os eventos da Primeira Era do Mundo (O Senhor dos Anéis conta os da Terceira Era). Antes de tudo isso, Tolkien nos presenteou com um texto lindíssimo sobre antes da criação do mundo chamado Ainulindale, a Música dos Ainur.

Nesse texto Tolkien nos conta que havia “Eru, o Único, também chamado de Ilúvatar”, ele criou os Ainur que faziam companhia a ele antes que tudo fosse criado. E Eru propunha temas musicais para serem executados pelos Ainur. “E eles cantaram cada um sozinho ou apenas alguns juntos, enquanto outros escutavam; pois cada um compreendia apenas aquela parte da mente de Ilúvatar da qual havia brotado e evoluía devagar na compreensão dos seus irmãos. (…) de tanto escutar, chegaram a uma compreensão mais profunda, tornando-se consonantes e harmoniosos”. Em resumo, havia uma canção que emanava da mente de Ilúvatar e cada ainur era consciente de apenas uma parte da música e a executava para a alegria de Ilúvatar. E fora de sua morada havia o vazio. E de Ilúvatar provinha a música e o silêncio e os ainur pouco compreendiam disso.

Num belo dia Ilúvatar inovou. Ele apresentou um tema musical poderoso, a canção era tão profunda que se desdobrava em imagens e sentidos e revelava a glória do início e do final de todas as coisas. Os ainur ficaram perplexos e emudeceram. O prosseguimento disso é lindo e o próprio Tolkien precisa narrar:

“Disse-lhes então Ilúvatar: – A partir do tema que lhe indiquei, desejo que criem juntos, em harmonia, uma Música Magnífica. E, como eu os inspirei com a Chama Imperecível, vocês vão demonstrar seus poderes ornamentando esse tema, cada um com seus próprios pensamentos e recursos, se assim o desejar. Eu porém me sentarei para escutar; e me alegrarei, pois através de vocês, uma grande beleza terá sido despertada em forma de melodia.

E então as vozes dos Ainur, semelhantes a harpas e alúdes, a flautas e trombetas, a violas e órgãos, e a inúmeros coros cantando com palavras, começaram a dar forma ao tema de Ilúvatar, em eterna mutação, entretecidas em harmonia, as quais, superando a audição, alcançaram as profundezas e as alturas; e as moradas de Ilúvatar encheram-se até transbordar; e a música e o eco da música saíram para o Vazio, e este não estava mais vazio. Nunca, desde então, os Ainur fizeram uma música como aquela, embora tenha sido dito que outra ainda mais majestosa será criada diante de Ilúvatar pelos coros dos Ainur e dos Filhos de Ilúvatar, após o final dos tempos. Então, os temas de Ilúvatar serão desenvolvidos com perfeição e irão adquirir Existência no momento em que ganharem voz, pois todos compreenderão plenamente o intento de Ilúvatar para cada um, e cada um terá a compreensão do outro.”

Tolkien prossegue dizendo que aquilo Lhe pareceu bom, pois na música não havia falha. A música começou a chamar as coisas à existência. João disse que no princípio era o Verbo; Tolkien parafraseia convidando-nos a perceber que é possível que no princípio tivesse sido a música. O texto vai nos mostrando de um jeito lindo (lindo lindo!) o poder criativo da música de Eru e não apenas isso, o texto nos garante que uma sinfonia perfeita seria tocada ao fim de todas as coisas quando todo joelho se dobrasse diante de Ilúvatar. Em síntese, a narrativa tolkiana vai nos contando os primeiros acontecimentos (criação do mundo, ambição-desafino-dissonância e rebelião de Melkor) a partir da perspectiva do som. Se pensarmos do ponto de vista científico faz sentido a proposta de Tolkien: as notas musicais são feitas a partir de princípios matemáticos. São equações. A constituição do mundo é explicada a partir de equações. Em suma para a ciência, é altamente possível que o mundo fosse constituído a partir de equações, ainda que sejam equações musicais.

O que mais gosto desse texto do John Ronald Reuel é a compreensão de que em tudo há música e que existe A Música que define todas as coisas. A melhor parte? É que todos tem acesso apenas a partes da música e executam só o que lhe cabe e só Eru conhece a melodia completa. Essa alegoria me anima pois compreendo Deus sob a mesma perspectiva: DEle parte a música que nós apenas refletimos. DEle nós também partimos, e como Paulo disse a Agripa: nos movemos e vivemos e existimos. Toda nossa tentativa de fazer música nada mais é que o instinto de estar próximo a Sua mente e alcançar sua sublimidade eterna. Ou como escreveu o Marcos Almeida, todo som entoado não é mais que uma grande vontade de Te conhecer.

Enfim, leiam Tolkien, leiam O Silmarillion e percebam que é possível que sob notas musicais os rumos do mundo sejam traçados.