adelia-prado (1)

 

(Não sei o que faço aqui. Este é um site de música e vim escrever sobre escrita. Então, escrevo).

 “Porque tudo que invento já foi dito nos dois livros que li: as escrituras de Deus, as escrituras de João. Tudo é Bíblias. Tudo é Grande Sertão”. Adélia Prado.

Adélia é uma senhorinha mineira que escreve poesia e prosa. Publicou seu primeiro livro aos 40 anos. Foi professora por 20 anos. Talvez a docência com suas pedras no meio do caminho a tivesse endurecido, mas não o fez, ela é enternecida por natureza. Falo aqui de Adélia porque ela tem desconcertado a muitos com sua simplicidade, entre eles o Gérson, o Silvestre e eu. É tanto desconcerto que quando o Afonso Romano Sant’anna apresentou o manuscrito de  “Bagagem” a Drummond, este não  foi imune e escreveu:

“Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo: esta é a lei, não dos homens, mas de Deus. Adélia é fogo, fogo de Deus em Divinópolis”.

Adélia é fogo que arde devagarinho. Sem alardes e sem reservas. A mineira escreve sem subterfúgios e desse jeito consegue afetar a muitos. Sem pressas ou ansiedades do mercado literário, Adélia ficou 10 anos sem escrever e em 2010 escreveu outra celebração do ordinário chamado “A duração do dia“.

Feminista, perplexa diante de grandes mistérios, levemente passional, sardônica e irremediavelmente simples. Adélia não estabelece compromisso com a Marvel e seu olhar e palavras preferem a fragilidade humana. Há uma máxima atribuída a muitos que diz: “a simplicidade é a máxima sofisticação”; dona Clarice, a Lispector, escreveu (escreveu de verdade!) que era preciso muito esforço para chegar à simplicidade. Os dois posicionamentos são perfeitos. Tendemos ao floreio e a retórica. Volta e meia somos seduzidos pelo canto das palavras difíceis. Temos muita aversão as coisas ordinárias. É engraçado que nesse aspecto dona Adélia se assemelha ao Evangelho: celebra as coisas simples. E isso nos causa um enorme espanto!

A poesia e prosa de Adélia conta causos de família, discorre sobre uma cor, cata feijão, fica feliz fazendo um bolo, sofre, pinta uma parede de laranja, vive a eternidade no seu dia a dia. Ela se relaciona com Deus: verbaliza dúvidas,  questiona-o sobre quem Ele de fato é, pede afago e afeto, ora. Ela pede que Deus a livre da adultice. Ela confessa a Deus suas loucuras. Adélia aponta para Deus todo o indizível do universo.  Ela descobre Deus nos pequenos detalhes do dia a dia. É provável que ela O veja na erva do campo e no pardal no fio de eletricidade. Adélia ou é fé ambulante ou um grande embuste. Para ela “a borboleta parada: ou é Deus ou é nada”. Não há meio termos na simplicidade. Ou é ou não é.

“Estou com saudade de Deus,  uma saudade tão funda que me seca.” 

Adélia cumpre a risca um antigo desejo de Manuel Bandeira que não queria o lirismo burocrático, nem o lirismo comedido. O lirismo dessa senhora é político em seu feminismo, perplexo em sua relação com Deus, é lúcido em suas fraquezas, é espantado diante das grandezas e das miudezas do mundo, é ansioso em ser criança. É um lirismo simples e necessário.

“Estava muito surpresa com a perfeita mecânica do mundo e muitíssimo agradecida por estar vivendo. Foi quando teve o pensamento de que tudo que nasce deve mesmo nascer do empecilho,mesmo que os nasciturnos formem hordas e hordas de miseráveis e os governos não saibam o que fazer com os sem-teto,os sem-terra,os sem-dentes e as igrejas todas reunidas em concílio esgotem suas teologias sobre caridade discernida e não tenhamos mais tempo de atender à porta a multidão de pedintes. Ainda assim,a vida é maior,o direito de nascer e morar num caixote à beira da estrada. Porque um dia,e por ser único dia em sua vida,um deserdado daqueles sai do buraco à noite e se maravilha. Chama seu compadre de infortúnio: vem cá,homem, repara se já viu céu mais estrelado e mais bonito que este! Para isto vale nascer.”

Aconselho que você leia a Adélia. Leia seus livros de prosa. Leia suas poesias. Leia sozinho ingerindo aos poucos as palavras. Depois compartilhe com alguém íntimo e vivam a sinergia disso. Mario Quintana escreveu que em poesia só há confluência. A gente gosta do que se parece conosco. E eu espero que haja confluência entre Adélia e vocês. Eu espero que vocês sejam simples como aconselhou o sábio Salomão.

No princípio era o Verbo. O verbo ainda hoje chama a vida à existência. Existe o Verbo e existe Adélia, a sua mais simples preposição.

Sobre o Autor

uma canção que o Bilbo não concluiu.

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