(Antes de qualquer coisa queria convidá-los a sempre ler os textos que posto aqui com os binóculos que Lewis e Tolkien usavam a respeito dos mitos: um mito, seja ele qual for, é uma alegoria da realidade. Uma interpretação da vida. Ponto).

Me deparei com o Salmo 107, que é basicamente um louvor que afirma a bondade de Deus em proteger viajantes, doentes, navegantes e todos os homens em geral, segundo sua epígrafe. O salmo vai contando em alguns versos as dificuldades que podem acontecer no mar e nossa total impotência diante delas. Isso me remeteu a um clássico cristão (pelo menos na minha igreja é!) que foi gravado há pouco tempo pelo Eduardo Mano: Sossegai (composto em 1874 por Mary Ann Baker). Sempre gostei dessa canção. Retratando um drama, ela revela que diante de um mar revoltado só nos resta o pavor e a iminente morte. E retrata também que precisamos de um Salvador. A canção naturalmente foi inspirada na experiência dos discípulos diante de uma tormenta no mar seguida por Cristo sereno e tranquilo andando por cima das águas (Lucas 8). Mas poderia ser sobre a tempestade que assolou o barco de Paulo quando ia para Roma (Atos 27). E podia ser outra história, outro personagem, poderia ser inclusive sobre o Ulisses. Ou sobre mim.

A vida cristã é muito semelhante a vida de Ulisses, personagem principal do poema Odisséia, de Homero (sim, eu sei que vou fazer um paralelo usando mitologia grega, releiam o recado que inicia esse texto e atentem pra história!).
Ulisses, saiu da Grécia deixando mulher e filho em Ítaca, onde era rei, para ajudar Agamenon na guerra contra Tróia. Troia foi o espaço para as maiores batalhas e os maiores guerreiros do imaginário grego (A guerra de Tróia acontecia entre os guerreiros na terra e entre os deuses no Olimpo). Ao fim dela, todos os grandes morreram: Heitor, Diomedes, os dois Ajax, Agamenon, Menelau, Aquiles. Alguns covardes como Paris também caíram. E entre tantos mortos e feridos um sobreviveu. O mais astuto. O mais reconhecidamente inteligente. O general das táticas brilhantes. O responsável pela manobra estratégica que deu a vitória à Grécia. Isso mesmo: Ulisses.

Vencer uma guerra pode nos tornar levemente arrogantes. César sabia disso, por isso a existência do soldado que lhe lembrava sua condição humana mortal nos retornos vitoriosos. Infelizmente Ulisses não teve a mesma precaução. Como eu já disse, a batalha em Tróia foi travada entre homens e entre deuses. Foi por causa dos deuses que a guerra começou e de um jeito ou de outro foi por causa deles que a guerra terminou. No entanto, Ulisses termina a Ilíada extremamente confiante na própria capacidade.

A guerra em Tróia durou 10 anos. Quase todos morreram. Uma grande cidade foi destruída. Heróis lendários sucumbiram. E enfim Ulisses pôde voltar para casa. Havia uma mulher e um filho a sua espera. Havia um título de rei que ele precisa reassumir. E após a guerra o que mais pode lhe acontecer? Ele já venceu tudo. O que Ulisses desconhecia é que sobre ele havia um Olimpo irado. De um lado deuses furiosos por que Ulisses foi a mente que projetou a derrota de sua cidade, de outro deuses ressentidos por Ulisses não reconheceu sua ajuda na vitória. Até Atenas, a deusa que o protegia estava ultrajada.

Assim começa a Odisséia. Aqui começa a nossa alegoria.

Por mais que a gente conheça o caminho para casa não podemos controlar o que pode acontecer no trajeto. Sem alguém que controle o mar, o retorno do barco com certeza é incerto. Muita gente  ao longo dos anos tirou várias lições da experiência da história de Homero; a minha é que o caminho de volta para casa não é fácil e a gente precisa assumir a postura correta.

A desventura, com efeito, foi constante sobre Ulisses e sobre os seus companheiros, levando-o a errar durante dez anos – tantos quantos durou o cerco de Tróia – antes de reencontrar a sua ilha, a sua mulher e o seu filho.

Sacudido pelas tempestades e pelos caprichos dos deuses, Ulisses fez uma primeira escala na Trácia, cujos habitantes massacrou. Em seguida aportou ao país dos Latófagos, que se alimentavam do Iótus, a planta do esquecimento. Depois escalou a ilha dos Ciclopes, onde afrontou Polifemo, filho de Posídon, e devorador de homens. Daí dirigiu-se ao reino de Éolo, senhor dos ventos, que lhe ofereceu um odre onde estavam fechados todos os ventos. Mas os seus companheiros abriram-no e desencadearam uma tempestade. Então Ulisses foi atirado para o país dos antropófagos Lestrígones. Daí escapou para a ilha da mágica Circe, que transformava os marinheiros em porcos e, finalmente, aportou na sombria região dos Cimérios onde residiam os mortos e onde interrogou o adivinho Tirésias sobre o caminho a seguir para voltar a Ítaca. Depois sofreu a sedução maléfica das Sirenes, o perigo das Rochas errantes, a crueldade dos monstros Caríbdis e Cila, o trágico episódio na ilha de Trinácia, onde os Gregos, tendo imolado os bois brancos de Hélio, pereceram no mar, fuiminados por Zeus, deixando o herói sozinho, preso a uma jangada. Ulisses vivenciou acolhimento demasiado caloroso da ninfa  Calipso, que o aprisionou durante vários anos e a hospitalidade generosa do rei dos Feaces, AIcínoo, e da sua filha, Nausícaa, que recolheu o naúfrago. Até enfim chegar em casa.

Ulisses no seu barco sofreu todo tipo de infortúnio por acreditar que podia resolver as coisas sozinho. Ulisses no seu barco sobreviveu a si próprio porque precisava voltar pra casa. Ele sentia falta do amor que tinha deixado. Ulisses queria voltar a Ítaca.

O engraçado é que olho para minha vida cristã e penso: eu sou Ulisses. Simples assim.

Como ele, frequentemente confio em minha própria capacidade. Como ele, enfrento o mar confiante apenas na qualidade da minha tripulação e dos instrumentos de orientação. Como ele, eu esqueço que há controle sobre tudo.

Como ele, eu tenho enfrentando meus próprios monstros e já ouvi o canto sedutor de sereias. Como Ulisses eu já estive um tempo presa por minha Calipso (todo nós temos deuses que nos aprisionam. Não foi o que Paulo disse ao se referir a nossa batalha contra o mundo e contra nosso próprio ego?). Como o Ulisses eu frequentemente retardo minha volta por causa dos caprichos dos deuses desse mundo a qual me submeto. Eu me deixo seduzir pelo poder, pelo egoísmo, pelo sucesso e tantos outros. Eu simplesmente esqueço o fundamental quando as sereias começam a cantar. E quando elas cantam pouco importa quais são os instrumentos de orientação que tenho. Eles não me servem. Volta e meia eu aporto no país dos Latófagos e esqueço quem sou. As vezes me dou conta que estou na ilha de Circe e falta pouco para que eu me transforme em porco. E as vezes ganho ventos de presente e meus companheiros insistem em soltá-los sem saber que podem provocar uma tempestade. Isso sem falar no quanto posso me acostumar a viver numa ilha cheia de mortos. E por vezes eu quero saber dos adivinhos locais como chegar mais rápido ao meu futuro.

Eu sou Ulisses, porque tal qual ele, não faço ideia dos perigos que me esperam no retorno para casa. Como ele e como os discípulos eu não posso enfrentar o mar e seus percalços sozinhos. Como Ulisses eu definitivamente preciso de alguém que possa controlar o barco. Mas como os discípulos a mim é oferecido o Amor que não só controla o barco como controla o mar e os ventos. A mim, ao contrário de Ulisses, é oferecido o  Amor que sossega o mar. E como Ulisses há um amor que me fortalece para retornar a minha casa. Há um amor que dá sentido a tudo. Há uma expectativa de amor que anula todo o desespero da desventura. E sim, como Ulisses eu preciso aprender que o mundo é maior que eu, não é minha inteligência, astúcia ou charme que me farão vencer os infortúnios, é o Amor. O amor que comove tudo.

Sim, eu já sofri naufrágios e delírios, mas o amor me levará de volta para casa; sim o caminho tem sido longo e 10 anos ainda não passaram. Há monstros para eu enfrentar, períodos onde esquecerei quem sou, deuses egoístas chamando minha total atenção, sereias com cantos sedutores; e sim, há momentos em que precisarei ser amarrada ao mastro para não me jogar no mar e sucumbir em loucura. Haverá ondas, muitas ondas causando pavor. Leiam a Odisséia de Homero (encontrem uma edição que torne a leitura confortável para vocês) e olhem para ela sob a perspectiva da vida cristã e concluam o mesmo que vários estudiosos: a força de Ulisses reside na sua humanidade. Ele se manteve salvo não pela inteligência mas pela esperança do que lhe esperava no fim. Isso faz algum sentido pra você?

Para mim faz. Sou tão humana quanto o rei de Ítaca e tão propensa ao mesmos erros. O fundamental é que estou velejando de volta para casa e lá tem um amor que me espera pacientemente, me espera para finalmente reinar. Essa esperança me mantém no barco. Sim, eu sou Ulisses. Pois como cantou certo Josh Garrels: “But true love is the burden that will carry me back home..”

Sobre o Autor

uma canção que o Bilbo não concluiu.

Posts Relacionados