[ as vezes grandes escritores se propõem a escrever sobre suas trajetórias espirituais e nós ganhamos pérolas como essa]

“Há muitas formas de organizar as experiências que o protestantismo guarda. Os inquisidores colocarão fogo nos olhos do seu deus e com o fogo consumirão aqueles que se atrevem a ser diferentes. Os pacificadores colocarão o fogo nas lanternas e nos fogões, para iluminar, aquecer, cozer…

Minha primeira experiência / memória protestante tem a ver com um hino. Meu pai tinha ido à falência. Tudo se perdeu. Morávamos numa casa velha, emprestada, daquelas fazendas antigas do sul de Minas, sem água encanada, sem privada, sem luz elétrica. Era o cheiro de querosene das lamparinas, do estrume das vacas, do capim-gordura, do milho fermentado, o barulho do monjolo, da água que caía do rego, os camundongos e os cães que ladravam pelas noites a dentro… Mas, como disse a Cecília Meireles, “quando a desgraça é profunda, que amigo se compadece?” De um homem falido fogem os amigos. E foi então que apareceu lá naquela solidão um evangelista, o senhor Firmino. Do que ele dizia nada me restou: eu só tinha três anos. Mas guardei a música que me pareceu a estória de um homem de nome esquisito, João Totrono… Depois descobri que era “Junto ao trono de Deus, preparado, tens cristão um lugar para ti…” Iniciam-se minhas memórias com uma canção que ficou sendo sacramento de uma presença gratuita e estranha, quando os rostos familiares ficaram raros.

Chamei a memória da música não porque minha biografia tenha qualquer importância, mas porque, puxando um pouco mais os fios, a gente acaba por agarrar a história. Esbarramos com a Reforma Protestante e vemos todo mundo cantando. A Reforma aconteceu através da música. Pode ser que Lutero e outros líderes intelectuais do movimento tivessem pensado com rigor os seus pensamentos, mas pessoas comuns cantaram a Reforma antes de entende-la. Quem canta é mais perigoso do que quem só pensa. O canto põe asas nos pés. Haverá outra razão para as marchas militares que põem uma mesma cadência nos passos? O canto mobiliza o corpo, imobiliza o medo, e transforma gestos solitários em caminhadas solidárias. E Lutero colocou sua fé em hinos que eram repetidos e decorados, mesmo por aqueles que – crianças, talvez – não entendiam bem as ideias. A confiança se cristalizou em imagens. Qualquer um podia entender o que significava cantar “Castelo forte é nosso Deus, espada e bom escudo…”

O espírito protestante é um espírito cantante. Símbolo disto é um homem simples, João Sebastião Bach, que juntou em suas cantatas a palavras evangélica com a grandiosidade estrutural da música. Tanto ou mais que os documentos da Reforma, a música de Bach é minha amiga. Eu a invoco sempre nos momentos de confusão. Fé cantada é melhor que fé falada. E descubro que o meu protestantismo tem muito a ver com o fato de que a música desse homem é como uma encantação mágica que desperta em mim coisas boas, adormecidas, das quais frequentemente me esqueço. E fico melhor do que sou.

Compreendo que alguém poderá dizer que gosto por Bach é coisa refinada, de gente que pode se educar, o que está proibido à maioria… É possível. Mas Bach foi apenas um dos muitos que cantaram e continuam a cantar. E esta é a razão porque não me envergonho de pular de Bach para uma casinha de pau-a-pique, lá perto de Miguel Pereira, ao fim de uma trilha pelo meio do pasto, no buraco da noite, em que irmãos pentecostais de cabo de enxada e palavra reta cantavam sua fé singela e descomplicada, ao som das cordas, dos pandeiros, dos bumbos. E de lá voo para o último domingo de Páscoa, numa missa católica para crianças, em que, para o meu espanto, repentinamente a Igreja explodiu num “Glória, Glória, Aleluia”, sacudido por dezenas ou centenas de chocalhos, triângulos, pandeiros e tambores infantis, do jeitinho que manda o Salmo 150, tão lido e tão desacreditado… Que coisa mais ecumênica pode existir que a música? Para além de tudo o que nos divide, ela dá testemunho de que nós queremos cantar, cantar juntos, cantar que é bom viver… Se a teologia tivesse sido cantada, é certo que menos fogueiras teriam sido acesas… E descobri assim o Protestantismo como esse espírito cantante, que vive desde a cantata de Bach até a cantoria dos que não sabem distinguir bemol de sustenido.”

(Rubem Alves, julho de 1981)

Sobre o Autor

uma canção que o Bilbo não concluiu.

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