Hoje amanheci cantarolando o Entrega da Daniela Araújo: “e mesmo estando no caminho eu posso me perder a ponto de nem perceber, o bem que eu quero não faço, o mal que não quero, faço e refaço..”

Claro que isso me lembrou um certo Dr. do século XIX então vai ouvindo e senta que lá vem estória…

 

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Existe uma natureza hermética no homem?  Para muitos filósofos sim, para outros não. A humanidade debate a séculos sobre essa questão. Alguns já disseram que o homem nasce bom e a sociedade o corrompe, outros que o homem é o lobo do homem. E sobre isso, a Bíblia com muita sensibilidade revela a realidade da natureza que nos habita: há uma natureza hermética sim, e ela se caracteriza pela luta entre o homem criado a imagem e semelhança de Deus e o outro, o caído.

Paulo, lá em Romanos 7, em meio à uma eloquente exposição da importância da lei como parâmetro para a profundidade da graça, confessou o tamanho da nossa fragilidade humana: “o bem que eu quero não faço, o mal que não quero esse faço”. Muitos de nós não compreendemos metade das orientações e conclusões de Paulo em suas cartas, mas ao lermos isso em Romanos entendemos. Não precisa sermão. Entendemos de cara.  Já vivemos isso. Temos um embate desse nível todos os dias desde  a queda no Éden; é esse sentimento que caracteriza nossa humanidade. É por isso que precisamos da Misericórdia que não sofre mudança nem sombra de variação.

Essa é a primeira coisa que quero que vocês atentem.

A segunda reside na qualidade de livros que chamamos de Clássicos da Literatura Mundial. Eu sempre tive um desafio pessoal: ler clássicos para saber porque eles foram chamados assim. Até hoje não me decepcionei. Um clássico é um livro que tem uma linguagem universal, que fala de sentimentos e atitudes que podem ser compreendidas anacronicamente. Um desses clássicos é O estranho caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde, de Stevenson, mais conhecido por vocês como O médico e o monstro; um livro que ainda fala conosco, de inúmeras maneiras.

O cenário da história é Londres do século XIX, local em que o respeitado e amado médico e cientista Dr. Henry Jeckyll quer provar que todo ser humano carrega em si o Bem e o Mal.  Em seu testamento, ele deixa sua fortuna em caso de morte ou desaparecimento para o misterioso Edward Hyde, que demonstra não ter boa índole. Seu amigo e advogado, Mr. Gabriel Utterson, então começa a investigar o motivo pelo qual um homem tão digno quanto Dr. Jeckyll beneficiaria alguém tão inescrupuloso e mau como Mr. Hyde. Ameaça? Chantagem? Algum parentesco distante que não queria deixar à rua da amargura?

Mal sabia ele que a verdade era que Mr. Hyde nada mais era que a consequência dos estudos e da experiência de Dr. Jekyll para provar que todo o ser humano tem duas naturezas opostas: uma boa, que nos faz ser respeitados e adorados pela família e sociedade, e outra má e sombria, que nos torna agressivos e temidos por todos. Para provar sua teoria, ele cria um elixir para fazer aflorar seu lado mau, porém ele não previa que Mr. Hyde sairia do controle.

O livro é classificado como terror, no entanto parece mais uma investigação policial. Por ser uma obra universal poucos leram porém muitos conhecem o seu roteiro e criam variadas interpretações. Uma delas é a ideia de que o Mr. Hyde seria um monstro (é o que nos mostra A liga extraordinária e Hulk – inspirado na obra de Stevesson) fenotipicamente falando. Na obra original o doutor ao se transformar em monstro não sofre mutação física alguma; ele só se torna um mutante na personalidade. A ideia de associar feiura e deformidade física à maldade é coisa do século XX. Daí é bem legal ler o livro e ir tendo as nossas noções de monstro desconstruídas. Logo o Stevesson nos apresenta um debate mais profundo: o monstro não é facilmente perceptível, ele está a espreita, esperando, dentro de nós, a oportunidade certa para ser.

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O livro, claro, é um produto de seu tempo. O Robert Stevenson estava (tal qual a sociedade em geral) impressionado com as afirmações da Psicanálise de que o homem não é um apenas racional como também regido por instintos primários e não tem o menor controle sobre o próprio inconsciente. Além disso, como bom calvinista, tinha a permanente reflexão sobre o lado mais sombrio da natureza humana; o que era uma constatação da religião foi enfim validado pela ciência como discurso.

O médico e o monstro foi inspirado na vida dupla de um homem de Edimburgo que de dia era um respeitado marceneiro e de noite roubava as casas dos moradores da cidade. Stevesson inventou uma porção que justificava o florescer do mal. E nós? Qual justificativa temos ao liberar o Mr. Hyde que nos habita?

Sim, sim. Tenho uma péssima notícia pra te contar. Na verdade Paulo já contou: o mal que não quero, esse faço. Todos estamos sujeitos em maior ou menor grau ao mesmo drama do Dr. Jekyll, logo todos precisamos de ajuda. A porção foi tomada por Adão e herdamos geneticamente a mutação. O incorruptível foi corrompido. Mr. Hyde está agindo simultaneamente em nós em porções de orgulho, inveja, maldade velada, recusa de ajuda, hedonismo… e etc. Não importa quão bom e amado sejamos enquanto Dr. Jekyll o Mr. Hyde sempre se revela. Não há como fugir. Mas há como neutralizar: graça. Sempre a graça. Solo gratia!

A lei de Moisés lidava com ações que eram públicas necessariamente. As acusações precisavam de testemunhas. As punições eram severas e públicas. Jesus chegou e nos trouxe a graça e na sua profundidade e maravilha nos advertiu que a preocupação do cristão deve estar sobre tudo no seu interior; nos pensamentos, sentimentos e ações privadas. Nossa responsabilidade e necessidade de cuidado multiplicou-se exponencialmente.

A lei não sabe lidar com Jekyll-Hydes, a graça foi feita especificamente para eles. A lei dava a impressão de autojustiça, a graça nos lembra que nossa justiça é trapo de imundícia. A lei permitia um auto orgulho pelo bem feito em público, a graça nos constrange ao revelar nossa natureza privada e o tamanho do amor Daquele que conhece,  sobretudo o Mr. Hyde em nós,  e ainda assim nos quer.

 

Sobre o Autor

uma canção que o Bilbo não concluiu.

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